28 de fevereiro de 2012

Felicitações Literárias

...
Parabéns a Mário Cláudio*, um dos meus escritores contemporâneos preferidos (ou talvez devesse dizer o meu escritor preferido), que ontem foi distinguido com o prémio da Sociedade Portuguesa de Autores para melhor obra de ficção narrativa, com o livro Tiago Veiga - uma biografia. Trata-se de uma honrosa distinção a somar às muitas que já recebeu (há mesmo quem defenda que se fosse uma personalidade mais mediática e extrovertida, há muito que teria maior reconhecimento internacional, inclusive da Academia Nobel...). Já aqui referi algumas das suas obras, como foi o caso de Amadeo (sobre o pintor Amadeo de Souza Cardoso), mas sou incapaz de seleccionar um livro entre todos os outros. Deixo algumas sugestões adicionais, com a ressalva de que a minha opinião é suspeita, ainda que vivamente as aconselhe! Assim, e sem ordem de preferência, aqui ficam:
Boa Noite, Senhor Soares (inspirado no pseudo-heterónimo de Fernando Pessoa);
Guilhermina (sobre a famosa violoncelista portuguesa Guilhermina Suggia); e 
Ursa Maior (um verdadeiro "unputdownable", que por sorte foi o primeiro que li do autor e me tornou incondicional. Integrado numa trilogia literária, cujos títulos se inspiram em constelações, a este livro juntam-se ainda Orion e Gémeos).

*Pseudónimo de Rui Manuel Pinto Barbot Costa
.
(Imagem daqui)

23 de fevereiro de 2012

Se tu viesses ver-me à tardinha

- Se tu viesses ver-me à tardinha - dizia Florbela Espanca, - eu havia de contar-te os anos idos - dir-te-ia eu. Havia de contar-te as descobertas, as aventuras, os tropeções e sustos; e as vezes e o tempo que contemplei o teu retrato.
Se tu viesses ver-me à tardinha, eu havia de interrogar-te sobre o destino das almas: - Sempre é verdade que existem? E para onde vão? E porquê assim, de repente? - Tantas perguntas que eu tinha p'ra te fazer... Tanta coisa p'ra te contar… Sabias que comecei a desconfiar de deus quando partiste? Logo tu, que nos fazias tanta falta. Logo a mim, que era ainda tão pequena...
Se tu viesses ver-me à tardinha, havia de te contar dos namorados que tive, porque era a ti que queria revelá-lo em primeiro lugar. Havia de contar-te o que não disse a mais ninguém e retrospectivamente ouviria os teus conselhos.
Se tu viesses ver-me à tardinha, dir-te-ia das recordações que de ti guardo: da meiguice, do cheiro do teu bolo de canela, dos passeios e brincadeiras que partilhámos, da força das tuas mãos e mais ainda do teu carácter, do sorriso que me reservavas quando a morfina já não aplacava a tua dor mas aplacava a minha...
Se tu viesses ver-me à tardinha, eu juro que guardaria segredo. De qualquer modo, ninguém acreditaria. Talvez dissessem condoídos: - “Pobrezinha… descompensou”.
Uma coisa eu te garanto: se tu viesses ver-me à tardinha, nem que fosse só por uma vez, eu havia de pousar a cabeça no teu colo, sentir de novo a textura da tua saia e a aspereza das tuas mãos no meu cabelo, e pela primeira vez em muito tempo, poderia consentir-me fechar os olhos e voltar a acreditar, sem reservas, que o mundo é um lugar seguro.

17 de fevereiro de 2012

Da amnésia europeia

«Na noite em que Atenas voltou a arder, Manolis Glezos foi barrado pela polícia quando pretendia entrar no parlamento. (...) O octogenário de bigode branco e olhos azuis disse com a dignidade de um velho resistente aquilo que Venizelos, o ministro das Finanças, entredisse mais tarde, na outra margem do desespero: "Há vários países que já não nos querem". Esta constatação de que a Europa das contas certas se dá ao luxo de descartar uma das suas partes como se apagasse uma parcela errada, esta ideia de que o controlo da dívida justifica o abandono de valores estruturantes, fundadores, da própria ideia de Europa, é já explicitada com o despudor e a desfaçatez dos cobradores de fraque. Karolos Papoulias, o presidente grego, (...) veio lembrar-nos que os europeus lutaram juntos no passado. (...) Ora desse passado (...) há, ainda, mesmo que aparentemente residuais, contas por saldar. Foi o que Manolis Glezos gritou à porta do parlamento na noite em que Atenas voltou a arder. Ele lembrou que Hitler obrigara o Tesouro grego a emprestar dinheiro ao III Reich. 100 milhões de euros, às contas de hoje. Berlim pagou dívidas semelhantes a outros países, depois da guerra. Mas nunca saldou a dívida que tem perante a Grécia, agora "descartável". Quem é o (...) o velho resistente Manolis Glezos (?). Quem é este homem? É aquele que num certo 30 de Maio de 1941, retirou a bandeira nazi da Acrópole. De Gaulle chamou-lhe "o primeiro partisan da Europa". (...) Escorados na memória e nos valores que fundaram a Europa, Manolis Glezos e Mikis Teodorakis, ambos antigos resistentes e antigos deputados, estiveram à porta do parlamento, na noite em que Atenas voltou a arder. Diante da força policial que os barrou, eles repetiram Zorba, o Grego, a cena em que Zorba abre os braços e grita para o companheiro: - "Alguma vez viste um desastre mais esplêndido?". Zorba, o que dança na praia de Stravos, levado pela música de Teodorakis. Chamavam-lhe "Epidemia". Porque espalhava o caos.».
.
(Sinais, "Manolis Glezos", crónica de Fernando Alves na TSF, em 16/02/2012)
Imagem: Memosine (deusa da memória), pintura de Rossetti, 1875-76.

10 de fevereiro de 2012

Improvisemos...

.
O capricho de um segundo
roubou-me o meu futuro
provisoriamente inteiro.
Hei-de reconstruí-lo ainda mais belo
como o imaginava desde o princípio.
Hei-de reconstruí-lo sobre esta terra firme
que se chama a minha vontade.
Hei-de elevá-lo sobre os altos pilares
que se chamam o meu ideal.
Hei-de dotá-lo de um subterrâneo secreto
que se chama a minha alma. (...).
(Edith Södergran, poema declamado aqui)

(Kandinsky, Improvistion 28, 1912)

(Porque nos tempos que correm, improvisar é preciso. E porque a arte expressionista, como a pintura ou a poesia que aqui se ilustram, pode ser extremamente inspiradora.) 

3 de fevereiro de 2012

São pessoas, senhores. São pessoas.

.
Por estes dias chega a Portugal a vaga de frio que  tem assolado a Europa. A comunicação social anuncia que autarquias e instituições várias reforçam o apoio "aos sem-abrigo". Pessoalmente, abomino esta expressão. Categorias, como esta, remetem aquele que é humano para um plano abstracto, "coisificam-no", tornando-o invisível para muitos e aliviando a consciência de outros tantos. Não são "os sem-abrigo". São pessoas sem abrigo. São a Maria, o António, o José, o João e tantos outros, privados de condições condignas de subsistência. Se sentem frio, fome, dor, ou a simples necessidade de um banho, não dispõem de meios imediatos para os enfrentar; mas a matéria de que são feitos é idêntica à nossa. Não há os "sem abrigo" e os "outros". Há, tão-somente, pessoas.